Filme retrata o que acontece quando as informações entre o corpo e o cérebro ficam desatualizadas e a imagem que vemos de nós mesmos não condiz com a realidade.
Sempre me questiono quando foi que comer se tornou algo tão complicado para o ser humano. Estar de dieta virou um estado constante, fazendo com que as pessoas percam a autoestima e aumentem a insatisfação com o próprio corpo, podendo gerar transtornos como a anorexia.
Diversos estudos vem demonstrando, alguns circuitos cerebrais relacionados com o consumo alimentar e o controle do peso. Regiões como o hipotálamo e o mesencéfalo recebem sinais de diversos hormônios, integrando as informações entre o corpo e o cérebro. Porém, pouco se sabe sobre a distorção de imagem corporal. Esse é um distúrbio muito característico de indivíduos com anorexia nervosa e que vem se tornando cada vez mais comum diante da pressão pela alimentação e corpo perfeitos.
Quando soube que a Netflix lançaria um filme sobre transtornos alimentares foi uma mistura de sentimentos. Por um lado, fiquei feliz em ver que mais pessoas estão pensando sobre o assunto e entendendo a importância de discuti-lo. Mas também fiquei curiosa e preocupada sobre como seria feita a abordagem do tema. To the bone (ou “O mínimo para viver”) retrata de maneira responsável e sincera a vida de Ellen, interpretada por Lily Collins. Ellen é uma jovem de 20 anos que vem lutando contra a anorexia e, depois de diversas internações frustradas, recorre ao médico William Beckham, personagem de Keanu Reeves, que apresenta uma abordagem alternativa, focando não só no tratamento clínico, como auxiliando os pacientes a encararem a doença e a viverem o presente. Independente das críticas sobre o filme poder agir como um possível gatilho para os transtornos alimentares, acho que o seu ponto mais positivo é mostrar que esses distúrbios não são exclusivos de adolescentes de classe média/alta, modelos, atletas e dançarinas. E o filme deixa isso claro, mostrando que existem àqueles que possuem o peso baixíssimo, mas também os que são obesos, homens, pessoas mais novas, mais velhas… Assim, é importante percebermos que é um problema complexo e mais comum do que imaginamos.
Deixando a ficção de lado e voltando ao mundo real, na anorexia a imagem que a pessoa tem de seu corpo é mais real do que o seu corpo em si. E é essa distorção que motiva a restrição alimentar e a perda de peso. Mas como explicar essa distorção de imagem? Esse é um dos sintomas da anorexia mais difíceis de serem compreendidos. Como é possível a pessoa não enxergar a mesma coisa que estamos vendo? Para começar a compreender esse processo, diversos estudos baseados em neuroimagem de ressonância magnética funcional sugerem bases neurais para a distorção de imagem. Parece complicado, mas calma que eu explico… Diversos estudos veem observando que algumas regiões cerebrais apresentam alteração em sua resposta frente à percepção corporal e às emoções relacionadas com a imagem. O curioso é que em geral, indivíduos com anorexia se enxergam gordos, mas não apresentam alteração na percepção corporal das outras pessoas.
Quando olhamos no espelho, 3 componentes são levados em consideração: o afetivo, o cognitivo e o de percepção. Tanto o afetivo, quanto o cognitivo, estão relacionados com questões socioculturais de idealização e aceitação corporais, de acordo com os padrões da sociedade. O de percepção é o mais intrigante e o que vem sendo mais estudado atualmente. Ele se refere à regiões cerebrais responsáveis por integrarem a imagem real com a imagem que o indivíduo percebe de si. Quando ocorrem problemas em um desses 3 fatores a pessoa começa a ter uma distorção da sua própria imagem. Por exemplo, alterações em regiões visuais do cérebro, podem gerar problemas de formação da imagem corporal, como falarei adiante.
De acordo com alguns pesquisadores, existem dois tipos de referência de imagem: a egocêntrica, que utiliza informações sensoriais para construir a imagem de como é o seu corpo nesse momento (online). Ela é construída a partir das informações geradas pelos sistemas sensoriais, como a visão e o tato, que auxiliam na percepção de como o seu corpo é agora. E a alocêntrica, baseada na memória de como você lembra ou acredita que o seu corpo é normalmente (offline). Resumindo: usamos tanto a memória de como o corpo costuma ser (tamanho e forma) – offline – como a percepção atual dele (aqui e agora) – online – para construir a nossa imagem corporal. Essas referências são periodicamente atualizadas, de acordo com possíveis mudanças como uma perda de peso, por exemplo. E é nesse momento de atualização entre as informações online e offline em que a pessoa com distúrbio de imagem encontra dificuldade, ficando presa na memória alocêntrica. E, portanto, com uma imagem desatualizada.
Apesar de muitas questões sobre o distúrbio de distorção de imagem ainda estarem abertas, é importante que cada vez mais se promova a auto aceitação e a satisfação com o próprio corpo. Práticas que auxiliem aos indivíduos a atualizarem a sua percepção de corpo atual podem ser ferramentas interessantes, nos casos de anorexia e outros transtornos alimentares. Romper a ligação entre alimentação saudável e padrões de beleza é fundamental para que de fato as pessoas passem a respeitar e a aceitar as suas formas E assim, poderem se reconectar com uma alimentação intuitiva e prazerosa.
Referência Bibliográfica:
1- Riva, G & Gaudio, S. (2012). Allocentric lock in anorexia nervosa: New evidences from neuroimagem studies. Medical Hypotheses.
2 – Dakanalis, A.; Gaudio, S.; Serino, S.; Clerici, M.; Cara, G.; Riva, G. (2016). Body-image distortion in anorexia nervosa. Nature Reviews.
3 – Riva, G. (2016). Neurobiology of anorexia nervosa: serotonin dysfunctions link self-starvation with body image disturbances through and impaired body memory. Frontiers in Human Neuroscience.